Os cidadãos têm direito a participar nos assuntos públicos; trata-se do direito
pertencente à esfera do status activae civitatis. Cada cidadão, como legítimo detentor
do poder soberano do Estado, deve ter respeitado seu direito de participar de todas
as esferas de decisão, seja contribuindo para a definição das políticas públicas a serem
implementadas, seja controlando a ação voltada à efetivação de tais políticas. Tratase,
de fato, do reconhecimento de que a esfera pública não diz respeito apenas ao
Estado, mas sim a todos que dele fazem parte. A noção de público prevalecente no
Estado Liberal e no Estado Social ou do Bem-Estar-Social, que remete à ideia de tudo
que diga respeito à esfera estatal, não mais pode ser aceita no paradigma do Estado
Democrático de Direito. Ao contrário, deve ser compreendida como esfera de todos,
cidadãos e poderes instituídos.
Povo não é apenas um referencial quantitativo que se manifesta no dia da eleição;
é, na verdade, um fluxo comunicativo despersonalizado que se faz presente de
forma legitimadora no processo democrático de governo. A característica que,
notadamente, coloca a pessoa na condição de cidadão é o gozo dos direitos políticos.
E, por direitos políticos, entende-se não só a capacidade de votar e ser votado (na
habitual distinção entre cidadania ativa e cidadania passiva, respectivamente), mas
também a de participação nos diversos segmentos de formação das decisões políticas
e de controle da atuação dos governantes.
O povo só é povo em sentido jurídico (não sob o prisma sociológico, histórico,
étnico, etc.), na lição do Ministro do Supremo Tribunal Federal, Carlos Ayres Britto
(2006, p. 18-19),
quando pode dispor normativamente sobre si mesmo. Quando se
autoqualifica juridicamente. [...] Afirmar, assim, que um povo já
existe, juridicamente, é dar conta do exercício vitorioso de uma
emancipação política.
Controle externo,
controle social e cidadania
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Pode-se observar, consoante definições que se formam na atualidade, que
o conceito de cidadão vem evoluindo e ganhando outras dimensões. Se em
épocas mais remotas a cidadania possibilitava ao sujeito a mera escolha de
seus governantes — diga-se de passagem, não eram todos que possuíam esse
“privilégio”, estando na condição de excluídos as mulheres, os analfabetos, os
negros e os que não possuíssem certa condição econômica (voto censitário)
—, hoje já não se contenta mais com isto. O cidadão eleitor de outrora passa
à condição de cidadão participante do poder político, nas suas mais variadas
vertentes, incluindo decisão e controle.
Conforme assevera Clève (1993, p. 16),
O conteúdo do termo cidadão, vamos tomá-lo em sua dimensão
dialética, para identificar o sujeito, aquele ser responsável pela história
que o envolve. Sujeito ativo da cena política, sujeito reivindicante ou
provocador da mutação do direito. Homem envolto nas relações de
força que comandam a historicidade e a natureza da política. Enfim,
queremos tomar o cidadão como ser, sujeito e homem a um tempo.
O cidadão é o agente reivindicante possibilitador, na linguagem de
Lefort, da floração contínua de direitos novos. Trata-se de ver, então,
a relação entre o cidadão (enquanto homem, ser e sujeito) e o poder
público em nosso país
.
A ideia principal da nova cidadania em sistemas de democracia representativa ou
semidireta, como mencionado alhures, está centrada na participação do cidadão
por meio do controle do poder político e da gestão administrativa, estando hoje o
indivíduo na condição de corresponsável pela qualidade do serviço público prestado,
uma vez que esta será a consequência das atitudes e comportamentos dos seus
usuários, ou, em outros termos, do exercício ou não da cidadania.
Um dos instrumentos de que se pode valer o cidadão para promover os atos
necessários à apuração de responsabilidades e à respectiva reparação dos eventuais
prejuízos causados pelos administradores ao patrimônio público é o Tribunal
de Contas. Além de agir de ofício, as cortes de contas também atuam mediante
provocação. É exatamente aí que se abre espaço para o cidadão, exercendo a vigilância
sobre a conduta administrativa, apresentar denúncia ao Tribunal de Contas visando
à apuração e correção dos atos ilegais, ilegítimos e antieconômicos praticados pelo
gestor público. Esse mecanismo de tutela do patrimônio coletivo está estampado no
art. 74, § 2º, da vigente Constituição da República, o qual dispõe:
Qualquer cidadão, partido político, associação ou sindicato é
parte legítima para, na forma da lei, denunciar irregularidades ou
ilegalidades perante o Tribunal de Contas da União.
DOUTRINA
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O instrumento da denúncia constitui um dos mais importantes conectores entre a
ação dos tribunais de contas (Estado) e a sociedade (cidadãos), visto que permite
a qualquer dos seus membros provocar o exercício do controle e a adoção das
providências legais cabíveis à prevenção ou reparação de danos.
Pelo explanado, pode-se inferir que o conceito de cidadão, condizente com
o paradigma do Estado Democrático de Direito, deve compreender todo o
“povo-destinatário” da atuação governamental, ou, em outros termos, todos
os atingidos pelas decisões (enquanto coparticipação do povo) e pelo modo da
respectiva implementação (enquanto efeitos produzidos no povo). Ninguém,
assim, fica legitimamente excluído. Nem os menores, nem os doentes mentais ou
mesmo aqueles que perdem temporariamente os seus direitos civis.
Esta ampla inserção, necessária em nome do que se deve entender por democracia,
está voltada, conforme Friedrich Müller (2000), ao objetivo de impor a igualdade de
todas as pessoas com vistas à qualidade de membro do gênero humano, à dignidade
da pessoa e à universalidade dos direitos fundamentais.
Nesses novos tempos, marcados pela necessidade de superação das compreensões
subjacentes aos paradigmas dos estados liberal e do bem-estar social, de estado
mínimo ou estado providência, respectivamente, e, ao mesmo tempo, pelo fenômeno
da mundialização e da revolução das comunicações, a sociedade, livre e pluralista, se
deu conta de que deve ser a protagonista do jogo político e de que precisa assumir
o seu controle. Por essa razão, passou a exigir dos órgãos instituídos para exercer as
modernas e complexas funções de controle que cumpram o papel que justifica a sua
inserção e permanência na organização do Estado como instrumento juspolítico, ou
seja, de ser o guardião dos direitos fundamentais e da democracia.
Desse modo, controle e cidadania são temas indissociáveis, tornando-se eficazes na
medida em que se preserva a função essencial do Estado de prover as necessidades
coletivas, o que inclui o controle realizado por meio de suas próprias instituições,
e, sobretudo, em que se abrem possibilidades para o exercício do controle social,
popular ou democrático.
Nesse cenário, é inegável a relevância das leis recém-introduzidas em nosso
ordenamento jurídico que consagram regras de materialização do princípio da
transparência (Lei Complementar n. 131/2009) e do direito de acesso à informação
(Lei n. 12.527/2011). Isso porque não bastam instrumentos e espaços para o
exercício do controle pelo cidadão, fazendo-se imprescindível dotá-lo do necessário
conhecimento.
Controle externo,
controle social e cidadania
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É imperioso reconhecer, por derradeiro, estar a potencialização dos resultados
advindos do exercício do controle diretamente ligada à efetivação da cidadania,
isto é, ao fato de que o indispensável controle externo do Estado precisa ser
permanentemente nutrido pela ação legítima e constante do controle social.
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